Desde dezembro de 1951, quando a então TV Tupi exibiu a primeira telenovela brasileira, Sua Vida Me Pertence, o gênero se tornou onipresente no imaginário nacional, expandindo seus horizontes não apenas dentro do Brasil, mas em diversos países que continuam a exibir os produtos criados pelas emissoras abertas nacionais.
Da esq. para dir.: Derli Pravato (IBOPE), Margarida Kunsch (ECA) e Maria Immacolata Vassallo de Lopes (ECA) | Foto: Marcos Santos |
Refletindo essa importância, a USP recebeu nos últimos dias 8 e 9 de outubro, o quinto Encontro OBITEL de Pesquisadores de Ficção Televisiva. O evento reuniu, no auditório da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, especialistas da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, pesquisadores do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva (Obitel) e profissionais de organizações como o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e da Rede Globo de Televisão, a maior produtora de telenovelas no país.
O encontro foi resultado de uma pesquisa de dois anos com dez universidades brasileiras. “Essa pesquisa só foi possível graças a um trabalho colaborativo, integrado entre vários pesquisadores, não apenas da USP, mas de diversas universidades brasileiras”, disse a diretora da ECA, Margarida Kunsch. O fato da pesquisa “extrapolar as fronteiras do país” é, na opinião da docente, uma das provas da relevância do trabalho e do sucesso da parceria com a Rede Globo e com o Ibope.
O coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências de Comunicação da USP, Eneus Trindade Filho, ressaltou pesquisa em rede em escala nacional tenha concretizado resultados que vão além do encontro e envolvem duas publicações, lançadas durante o evento, e distribuídas para todos os presentes, além de serem disponibilizadas gratuitamente na internet.
Entretenimento e pesquisa
Com dez anos de existência, o Obitel publica um estudo anual da indústria ibero-americana e tem como meta principal promover a formação de pesquisadores, produtores e criadores da área de ficção televisiva. A quinta edição do evento foi organizada em conjunto com a Rede Globo e o Centro de Estudos de Telenovela (CETVN), ligado à ECA.
Há 23 anos em atividade, o CETVN tem como objetivo investigar o que é a televisão brasileira no cenário comunicacional internacional, “o que a telenovela – como conceito – fala do país”, como definiu a coordenadora Maria Immacolata Vassallo de Lopes. O CETVN é também parte da rede brasileira do Obitel – o Obitel Brasil – fundado em 2007.
Citando a parceria com o Ibope, Immacolata ressaltou que é graças à medição do instituto que é possível comparar tendências e verificar questões embutidas nas narrativas ficcionais. Unir entretenimento e pesquisa acadêmica, “fazendo essa ponte entre academia e as indústrias criativas e midiáticas”, é, para ela, fundamental.
Para a gerente de desenvolvimento institucional da Rede Globo, Viridiana Bertolini, “o papel da Globo no Obitel é construir fontes”. Segundo ela, é necessário que a construção de conhecimento sobre a ficção televisiva seja levada a sério e, sobretudo, seja um conteúdo disseminado para o público. O apoio da emissora tem como objetivo principal tornar o Obitel um espaço cada vez mais aberto de discussão da produção da teledramaturgia.
Demonstrando uma preocupação que ultrapassa a mídia televisão, o diretor de atendimento comercial do Ibope, Derli Pravato, relembra que “os produtos não são mais consumidos apenas na televisão, são consumidos em outros aparelhos. Hoje os horários também são escolhidos pelo público”. Ter consciência disso, na opinião dele, ajuda os criadores de conteúdo e os que o analisam a pensar numa “medição em 360 graus” que abarque todas as novas mídias, e entenda o comportamento do espectador – em especial como esse espectador recebe, interage e afeta o conteúdo transmitido.
50 Anos da Globo
Rodrigo Fonseca e em destaque, o pesquisador Mauro Alencar | Foto: Marcos Santos |
Antecedendo os debates que constituíram a programação do encontro, uma mesa comemorativa dos 50 anos da Rede Globo trouxe roteiristas, pesquisadores e docentes para refletir sobre a influência desse que é um dos maiores canais abertos no Brasil.
Para o crítico e roteirista Rodrigo Fonseca, a emissora fomentou “50 anos de um imaginário muito específico”. Defendendo que a teledramaturgia hoje funciona como uma “bússola na busca de novos atores sociais”, Fonseca acredita que é uma das funções da ficção dar destaque para os temas que a sociedade brasileira vivencia diariamente.
Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia brasileira e latino-americana, relembrou que, de 1965 até os dias de hoje, foram 290 títulos produzidos de maneira ininterrupta pela Rede Globo. Com autores que, inicialmente, vieram do teatro, do rádio e da literatura, essa extensa produção foi criando e desconstruindo “arquétipos” ao longo de várias décadas.
O segredo disso, segundo George Moura, o roteirista por trás de minisséries como O Canto da Sereia e Amores Roubados, está em buscar qualidade e, acima de tudo “histórias que nos falem ao coração”. Para ele, quando se constrói produtos ficcionais para a televisão aberta, o público sempre tem razão. “E nós é que temos que descobrir a chave para nos comunicarmos com o público”, esclareceu.
“Realisia”
Ao debaterem como as telenovelas podem ir além da ficção para retratarem temas sociais em ações socioeducativas, criadores de conteúdo e especialistas em responsabilidade social foram confrontados com a noção de que, conforme Immacolata, “a telenovela não pode jamais ser desvencilhada do contexto do país no qual ela se passa e é feita”. Ainda que construídas sobre a matriz do folhetim e do melodrama, as telenovelas “rompem barreiras” ao representarem a estrutura social do país dentro do formato de uma narrativa popular.
Para Marcio Schiavo, diretor-presidente da consultoria Comunicarte, responsável pelo monitoramento dos temas sociais presentes em telenovelas, fazer esse acompanhamento aponta elementos que os próprios autores desconhecem sobre o próprio trabalho. “São monitorados diariamente 60 subtemas em 7 temas. Quanto à forma e quanto ao conteúdo”, explicou ele ao exibir um sistema que faz o fichamento das cenas e dos temas abordados em cada uma delas. Em 2014, 940 cenas com temas sociais foram catalogadas em telenovelas exibidas pela Rede Globo. “Nosso objetivo é registrar essa ‘realisia’, a realidade fantasiosa que está inserida dentro da ficção”.
Da esq. para dir.: Beatriz Azeredo e autora Gloria Perez | Foto: Marcos Santos |
“Novelas aparecem em primeiro plano junto com o jornalismo na percepção entre entrevistados sobre a responsabilidade social da Globo”, afirmou Beatriz Azeredo, diretora de responsabilidade social da emissora. A ideia é entender como isso pode contribuir para mobilizar a sociedade em torno de grandes temas, tais como educação, direitos humanos, diversidade, violência, saúde e qualidade de vida. “Estamos permanentemente buscando oportunidades em novelas, a partir das historias trazidas pelos autores”, reforçou.
Para a autora Gloria Perez, também presente no encontro, a intenção ao escrever suas primeiras novelas era “retratar o real”. Narrando como ela peregrinou pelas ruas de um subúrbio carioca antes de redigir Partido Alto (1984), com Aguinaldo Silva, a autora defendeu que o fato de falar com moradores locais e perguntar sobre deficiências da região, não assumiu um caráter apenas informativo em sua trama. “O informativo não envolve o público e não te leva a se colocar no lugar da pessoa”, argumentou ela. “É preciso criar empatia”.
Foi a partir desse trabalho inicial que Gloria Perez se condicionou a querer “jogar assuntos na mesa do país para a discussão”. Entretanto, ciente de que apenas colocar questões em voga não solucionaria problemas sociais complexos, a autora acredita que é preciso um esforço maior de autoridades para provocar legítimas mudanças. “Quanto a gente faz uma campanha numa novela e a novela acaba, o assunto sai de pauta”, ratificou ao mesmo tempo em que defendeu a importância de se registrar dramas humanos, representados em todas as classes.
“A telenovela se tornou pedagógica no Brasil”, finalizou Immacolata, reforçando que, apesar disso, as ações sociais ali registradas precisam sempre ser amparadas por politicas públicas.
Foto: Marcos Santos |
Coleção Teledramaturgia e Anuário
O quarto volume da coleção Teledramaturgia, “Por uma teoria de fãs de ficção televisiva brasileira”, reúne artigos de pesquisadores dedicados à ficção televisiva brasileira. Na edição lançada durante o encontro, especialistas refletem a consolidação da rede Obitel Brasil, composta por pesquisadores brasileiros de dez universidades.
No livro, equipes de pesquisa buscam responder aos desafios teóricos e metodológicos que têm caracterizado a investigação da ficção televisiva no contexto da cultura da participação e da transmidiação. Ou seja, o cenário em que o espectador (ou receptor) interage de maneira mais direta e imediata com os produtores de conteúdo e outros espectadores. Mais especificamente, seu objetivo é entender não apenas as práticas dos fãs de ficção televisiva brasileira, mas também as motivações dessas práticas.
Além dele, o encontro também foi palco do lançamento do livro “Relações de Gênero na Ficção Televisiva”, anuário lançado pelo Obitel, publicado simultaneamente em três idiomas que revela detalhadamente como funcionou o monitoramento das produções ficcionais do continente americano. O trabalho expõe dados de um monitoramento sistemático feito durante o ano de 2014 dos programas produzidos e transmitidos pelos canais abertos dos 12 países membros da rede, incluindo tabelas com informações compiladas sobre os títulos de ficção mais vistos no último ano até analises de sua recepção em diversas mídias. Foi a partir desses dados que pesquisadores puderam revelar quais foram as produções mais destacadas, além de elegerem o tema central que dá título ao anuário: “relações de gênero”.
Da ficção para a academia: encontro reúne pesquisadores de ficção televisiva